O Marido Dela – Pilar del Río no TedxPorto

Pilar subiu ao palco. Na mão, um livro de Saramago. Na postura, o orgulho imenso no legado que trazia consigo. “Quando ele morreu, as pessoas vieram às janelas e levantaram livros”- comentou, emocionada. Na plateia, o silêncio ensurdecedor de cada um daqueles leitores que tanto tinha a dizer. Partilhávamos o orgulho dela, a emoção. Era ele, o marido dela, o nosso único prémio Nobel da literatura.

Queria dizer-lhe que viajei, numa tarde febril, pela maldade humana no seu estado mais puro. Senti a aflição de um mundo que ficou cego, e a de quem tinha olho e não era rei.

Queria dizer-lhe que foi ele quem me aligeirou esse medo, tão humano, da minha própria finitude. E me fez crer, por uns momentos, que bastava ignorar os recados de uma Morte desajeitada, a desempenhar um ofício aborrecido, monótono e fatalmente irremediável. Vivo cada dia como se fosse o último, mas com a calma de quem acredita que o amanhã pode muito bem ser o dia seguinte em que ninguém morreu.

Queria dizer-lhe que foi ele quem me fez flutuar à deriva no Atlântico, numa jangada de pedra frágil acabada de perder contacto com o resto da Europa. E me fez pensar, como portuguesa, nas consequências sociais e políticas de tal afastamento.

Queria dizer-lhe que, tal como ele, nunca fui religiosa. E que foi ele quem me ajudou a pensar criticamente sobre as hipocrisias da Igreja, o abuso de poder e a corrupção por trás de cada esmola ou caridade.

Queria dizer-lhe que, através das palavras dele, pequei ao rir-me com vontade das histórias do antigo testamento e da história de Jesus. Ou do que ela poderia ter sido, não fosse já doutrina bem estabelecida e pregada aos quatro cantos do planeta, tal como está e sem lugar a questões. Essa de onde todas as metáforas foram já extraídas, em que não há lugar para adendas, palavra do Senhor.

Queria dizer-lhe que sempre fui apaixonada pela mente humana, por entender que motivações e desejos impulsionam comportamentos. E que foi Blimunda quem me mostrou, através dos seus olhos, um pouco desse desconhecido interior humano que sempre desejei desvendar.

Queria dizer-lhe que concordo com ela quando diz que “com livros se faz uma revolução”. Que acredito na emancipação dos povos pela educação, no poder do conhecimento e na magia da palavra escrita.

Queria dizer-lhe tudo isto, mas não deu tempo. Como sou melhor com palavras do que na moderna arte do networking, deixo aqui um testemunho do quanto admiro o legado que nos deixou o marido dela, da profunda admiração literária que nutro pelas palavras não pontuadas e a visão aguçada do mundo que José Saramago nos deixou a todos, em páginas que tantos, em todo o mundo, lêem com interesse.

Obrigada Pilar, pela simpatia e pelo sentido de responsabilidade em continuar a espalhar a obra e os ensinamentos de Saramago.

Cae

Ps. Um obrigada ao Norberto e a toda a equipa do Tedx Porto que todos os anos eleva a fasquia, e possibilita encontros inspiradores que deixam a sua marca em cada um dos participantes. Eu já sei onde vou estar a 29 de Março de 2025, e vocês?